domingo, 15 de abril de 2012

Quem tá gemendo? (Solano Trindade)


Quem tá gemendo,
Negro ou carro de boi?
Carro de boi geme quando quer,
Negro, não,

Negro geme porque apanha,
Apanha pra não gemer...

Gemido de negro é cantiga,
Gemido de negro é poema...

Gemem na minh'alma,
A alma do Congo,
Da Niger, da Guiné,
De toda África enfim...
A alma da América...
A alma Universal...

Quem tá gemendo,
negro ou carro de boi?

QUEM SE DEFENDE (BERTOLT BRECHT)

Quem se defende porque lhe tiram o ar
Ao lhe apertar a garganta, para este há um parágrafo
Que diz: ele agiu em legitima defesa. Mas
O mesmo parágrafo silencia
Quando vocês se defendem porque lhes tiram o pão.
E no entando morre quem não come, e quem não come o suficiente
Morre lentamente. Durante os anos todos em que morre
Não lhe é permitido se defender.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O quase ( Sarah Westphal)

Ainda pior que a convicção do não é a incerteza do talvez, é a desilusão de um quase.
É o quase que me incomoda, que me entristece, que me mata trazendo tudo que poderia ter sido e não foi.
Quem quase ganhou ainda joga,
quem quase passou ainda estuda,
quem quase morreu está vivo,
quem quase amou não amou.
 
Basta pensar nas oportunidades que escaparam pelos dedos, nas chances que se perdem por medo, nas idéias que nunca sairão do papel por essa maldita mania de viver no outono.
 
Pergunto-me, às vezes, o que nos leva a escolher uma vida morna; ou melhor não me pergunto, contesto.
A resposta eu sei de cor, está estampada na distância e frieza dos sorrisos, na frouxidão dos abraços, na indiferença dos "Bom dia", quase que sussurrados.
 
A paixão queima, o amor enlouquece, o desejo trai.
Talvez esses fossem bons motivos para decidir entre a alegria e a dor, sentir o nada, mas não são.
 
Se a virtude estivesse mesmo no meio termo, o mar não teria ondas, os dias seriam nublados e o arco-íris em tons de cinza.
O nada não ilumina, não inspira, não aflige nem acalma, apenas amplia o vazio que cada um traz dentro de si.
 
Não é que fé mova montanhas, nem que todas as estrelas estejam ao alcance, para as coisas que não podem ser mudadas resta-nos somente paciência porém, preferir a derrota prévia à dúvida da vitória é desperdiçar a oportunidade de merecer.
 
Pros erros há perdão; pros fracassos, chance; pros amores impossíveis, tempo.
De nada adianta cercar um coração vazio ou economizar alma.
 
Um romance cujo fim é instantâneo ou indolor não é romance.
Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode, que o medo impeça de tentar.
 
Desconfie do destino e acredite em você.Gaste mais horas realizando que sonhando, fazendo que planejando, vivendo que esperando porque, embora quem quase morre esteja vivo, quem quase vive já morreu.

Nescafé (Apanhador Só)

Banda muito boa de Porto Alegre, quem puder e quiser, conheça o som dos caras (www.apanhadorso.com)

Eu cuspo nescafé e você chora leite
de manhã
Amarro o meu sapato
e tu veste o sutiã

Cadê o nosso amor? me diz onde
vou correndo pegar o bonde
que linha liga o teu coração ao meu?


Almoço minha angústia
e tu ri com a cara na tv
eu tomo um conhaque
e tu fala em ter bebê


Remenda o meu sorriso e, sorrindo,
me costura mais uma ruga
desfaz a casa que casa com o meu botão


Me esqueço em pensamentos
e tu cobra um pouco de colchão
respondo qualquer coisa
e tu solta a minha mão


Coloca teu calor na estante
vem, se deita tranquila e dorme

em que sonho eu sonho meu sonho igual ao teu?

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

MANTENHA (Alzira Cabral)

 
Filha do teu adultério
existo
queiras ou não com a mesma pele.
Exilada
sobrevivo contente
na terra dos sem cor.
Com a boa vontade que ganhei
das gentes daqui,
sem ressentimentos nem vergonha
cultivo a mentira da tua grandeza
no existir dos meus descendentes.
 
E mando mantenhas, oh terra
através dos meus poemas vermelhos:
 
A cor que me deste!

MÃE NEGRA- (Aguinaldo Fonseca)

A mãe negra embala o filho.
Canta a remota canção
Que seus avós já cantavam
Em noites sem madrugada.
Canta, canta para o céu
Tão estrelado e festivo.
É para o céu que ela canta,
Que o céu
Às vezes também é negro.
No céu
Tão estrelado e festivo
Não há branco, não há preto,
Não há vermelho e amarelo.
—Todos são anjos e santos
Guardados por mãos divinas.
A mãe negra não tem casa
Nem carinhos de ninguém...
A mãe negra é triste, triste,
E tem um filho nos braços...
Mas olha o céu estrelado
E de repente sorri.
Parece-lhe que cada estrela
É uma mão acenando
Com simpatia e saudade...

ABERTURA (Ruy Duarte de Carvalho)

 
Silêncio mas por que e não apenas vento
até que a pedra se arredonde enfim
e a água se expanda
raiada no verde?
 
Um sono que se estenda obliquamente
entre a murada construção da idade
e as veredas ordenadas pelo passado.
 
Uma memória a ter-se
mas não aquela que o futuro impeça.
 
O sal, por toda a parte.
Então pequenos lagos se acrescentam
a partir de alguma fenda original. E são taças de mar
que dão contorno ao continente agreste.